VIAGEM AO INFERNO
Deparei-me com um lugar que não se via nada a não ser gente, descobri rapidamente porque as pessoas que estavam naquele local eram chamadas de vida, elas iam para um lado e para o outro parecendo que estavam fazendo alguma coisa, eu via os corpos normalmente com todos os membros, mas não dava para decifrar o rosto de ninguém, sem rosto para expressar emoção eu nem sei se chamá-las de vida seria o correto, talvez múmia ficaria melhor.
Continuamos a andar no meio daquela multidão até chegarmos a um local que segundo o Demo era o seu quartel, de onde ele dava todas as ordens e apenas uma vez por ano ele saía dali para ir buscar pessoalmente uma vida de muita sorte. O senhor capeta ou Demônio como gostava de ser chamado, chamou-me e disse:
— Vida Belarmino, nossa viagem chegou ao final, conversamos muito, isso tudo me deu fome ou você acha que no inferno ninguém come? Engano seu se pensava assim, durante sua estadia aqui todos os dias nesse horário nós vamos nos unir aos outros, tanto meus discípulos como as vidas que aqui estão para o grande banquete do dia.
— Não sei se você vai acostumar com o nosso cardápio, eu adoro e as vidas que estão aqui eternamente acabam acostumando, se você não gostar e no fim do seu passeio ainda estiver andando, pode se considerar uma vida que viverá. Vamos lá, disse ele.
Chegando ao local do banquete, mais uma vez espantei-me, sem demonstrar medo, até onde dava para enxergar só se via estaleiros onde estavam estendidas grandes mantas de carne e nos corredores entre os estaleiros uma multidão de vidas, que se fosse para contar levaria anos, a postos como se esperassem algum sinal.
Dava para enxergar no meio daquilo tudo os assessores do Demo que estavam em locais estrategicamente escolhidos. O grande Demo fez um sinal levantando um dos braços, este sinal era para seus assessores e como se fosse tudo ensaiado gritaram: — Devorarrr…
E todos ao mesmo tempo pegavam cada um uma manta de carne e começaram aquela mastigação geral. Percebi que mastigavam sem arrancar um pedaço da carne e com uma técnica já desenvolvida, iam rodando com a manta de carne pela boca até que a mesma ficasse toda branca. Nunca tinha visto tanta porcaria. Um demônio Garçom veio até onde estávamos trazendo uma grande bandeja vermelha com duas mantas de carne dentro, chegou em frente ao Demônio chefe e disse:
— Seu banquete Senhor.
Este por sua vez me ofereceu dizendo:
— Coma, você nunca mais vai ter uma oportunidade dessa. Eu respondi:
— E não pretendo mesmo, eu já não me aguento mais só de ver aquilo que vocês chamam de vida, chupando aquelas mantas de carne. De onde vem essas carnes? Ele respondeu: Eu ainda vou te levar para conhecer os departamentos que existem aqui, e um deles é o da desossa, lá se tira os ossos das vidas que não podem prestar mais serviços ou que não passaram no teste para demônio ajudante ou assessor.
Continuou o Demos. — Faz-se as mantas de carne para a subsistência de todas as demais. A carne que eu saboreio é especial, ela é retirada daquelas vidas que foram responsáveis por grandes catástrofes no seu mundo. Nesse momento todas as vidas estavam acabando a grande refeição e o que vi me deixou um pouco tonto, elas pegavam aquelas mantas que já estavam brancas de tanto mastigarem e estenderam novamente nos estaleiros. Quando olhei para o Demônio chefe que estava ao meu lado, ele tinha acabado de colocar na bandeja a sua manta de carne toda branca também, momento em que o garçom veio receber a mesma.
Saindo dali ele me levou para conhecer alguns departamentos, e o primeiro foi o que eles chamam de triagem. Quando a porta foi aberta eu vi um grande bar onde os assessores demônios derramavam e jogavam bebidas para todos os lados ao mesmo tempo em que davam grandes baforadas de fumaça com o cigarro preso à boca, enquanto uma multidão de vidas gemia implorando a bebida e o cigarro. Eu perguntei:
— Por que isso? O grande chefe respondeu:
— Quando essas vidas vêm para cá, acham que vão ter do bom e do melhor. Na verdade, tem, mas como você percebeu, elas enxergam, mas não podem usar a boca, porque essa não existe. No salão anexo tem a boate, lá estão as mulheres mais lindas que se pode ter notícia, todas estão peladas e dançando eroticamente, mas as vidas homens ficam lá também gemendo de tanto sofrimento, pois os seus órgãos sexuais não funcionam aqui, o mesmo acontece com as vidas mulheres em outro salão.
Fomos a outro complexo e deste o Demônio já havia me falado um pouco, era onde se fazia a desossa e logo na chegada pude observar que corria uma enorme enxurrada de sangue que vinha do grande salão onde acabávamos de entrar. Quando levantei os olhos, eu quis voltar, mas o Demo disse que eu tinha que passar por aquilo. Neste salão tinha filas e mais filas de vidas penduras de cabeça para baixo sendo desossadas pelos açougueiros demônios enquanto que outros preparavam as mantas de carnes que depois seriam servidas no banquete.
Pedi para não demorar muito ali, pois eu não fazia vômito porque não tinha nada no estomago. Não sei quanto tempo demoramos nestas visitas pelo fato de lá não ter relógio, mas o Demo me avisou: Vida Belarmino já está na hora do grande banquete de hoje. Foi aí que eu descobri que lá não tem dia nem noite é uma coisa só, e não sei como ele sabe quando é outro dia.
No caminho para o banquete, ele me explicou que na triagem existe um local chamado de trevas, onde as vidas passam por algum tempo depois que passam por todos os outros departamentos da triagem, para entenderem que ali realmente é o inferno. Ele me explicou que na triagem as vidas estão todas misturadas, assaltantes, assassinos, avarentos, traidores, adúlteros e adúlteras e tantas outras, além das que desrespeitam os pais, todas passam por esses departamentos de triagem para depois irem para o seu departamento específico.
Quando foi dada a autorização para iniciar o banquete, pelo Demo é que eu atentei para um fato, aquelas mantas de carne que todas as vidas e os assessores saboreavam, eram as mesmas do dia anterior que tinham sido estendidas nos varais após a mastigação.
Mais uma vez eu tive que passar por isso, e minha vontade mesmo era de ir para casa e esquecer tudo aquilo que ali vi, mas minha hora não tinha chegado, conforme me disse o grande Demônio.
Acabado o banquete, ele guiou-me a outros departamentos, cada um pior do que o outro e em uma dessas visitas resolvi perguntá-lo:
— Demônio, eu sempre ouvi dizer que no inferno existia os grandes fornos onde as pessoas eram queimadas, não fomos a nenhum departamento desse ainda, aqui tem ou não tem forno crematório? E ele respondeu.
— Eu estava deixando isso para depois, mas já que você tocou no assunto eu vou te levar até esse departamento.
Chegando a esse departamento dava para sentir de longe o calor que saía de vários fornos dispostos um ao lado do outro e enquanto eu observava aquelas línguas de fogo saindo das bocas dos fornos, o Demo me explicou:
— Nesses fornos estão sendo cremados todos os ossos daquelas vidas que foram desossadas, e a cada fornada retiram-se as cinzas que sobraram dos ossos levando-as para o demônio chefe da cozinha que prepara um grande banquete para mim todas as vezes que eu vou ao seu mundo buscar mais uma vida.
Esse ritual é necessário para que aumente em mim a força da maldade multiplicada por milhões de vezes das vidas que foram desossadas e cremadas, pois só assim consigo transpor a grande barreira que existe para entrar no seu mundo. Eu perguntei mais uma vez:
— Aqui não existem árvores para retirar lenha, como estes fornos são alimentados? Ele respondeu.
— Vamos nos aproximar mais um pouco dos fornos. Está vendo aquelas vidas que carregam uns pacotes e as jogam dentro das bocas que ficam em cima dos fornos? Pois bem, essa é uma tarefa especial aqui, todas aquelas vidas foram donos de empresa, banqueiros e agiotas avarentos e aquilo que carregam e jogam nos fornos são pacotes do que vocês chamam de dinheiro, que, aliás, é responsável pela maior parte das desavenças do seu mundo.
*continua na próxima página…