VIAGEM AO INFERNO

Por edmarpereira

Naquela rua ele era conhecido de todos, desde os adultos até as crianças. Era como se ele fosse um patrimônio daquele povo. Sempre ao cair da tarde, quando ele colocava uma cadeira na porta da casa e sentava-se, apareciam algumas pessoas e entre elas crianças para ouvir suas histórias e causos que ele sabia contar como ninguém.

Era conhecido como “o homem que foi ao inferno”. Ganhou essa alcunha devido a uma história que todos já conheciam de tanto ouvi-lo contar, jurava que realmente aconteceu com ele e a prova da veracidade dessa história é que ele não comia carne sob hipótese alguma, depois que voltou dessa viagem, pois lá participou de certos rituais que o fizeram mudar seu hábito alimentar.

Belarmino era seu nome de batismo e quando morreu por volta de 1960 já estava com mais de 90 anos de idade, motivo pelo qual o seu acervo de conhecimento era vasto, pois sendo ele do século passado já tinha visto muita coisa e participado diretamente de muitas mudanças que aconteceram no Brasil e também no mundo.

Como até essa época, se dizia “Em terra de cego, quem tem um olho é rei” ele era o próprio rei, pois enquanto poucas pessoas sabiam ler e escrever ele fazia isso com muita facilidade e desenvoltura, tanto que alguns anos antes, quando estava mais forte, às vezes faziam-se filas na porta de sua casa para que ele escrevesse cartas para os parentes e até para namorados e namoradas apaixonados que lá apareciam.

Além de ser uma espécie de escritor sentimental dos moradores daquela rua, ele conhecia a história do Brasil como ninguém, bem como a sua geografia.

Adquiriu esses conhecimentos lendo os livros que recebia de algum amigo ou parente que morava em outra cidade maior.

Com todo esse conhecimento acumulado, era normal ele querer passar isso adiante e ficava feliz quando chegava alguém para ele poder falar a vontade e responder as perguntas que lhe faziam.

Seu Belarmino era um homem feliz, pois sentia que era amado e respeitado por todos que o conheciam, não era um homem forte como alguns anos atrás, mas vivia sem grandes problemas de saúde, mesmo já tendo passado por várias epidemias e em alguns momentos sua saúde inspirou cuidados especiais, se sentia bem e se fosse fazer uma comparação com outros da mesma idade ou até mais novos dava para perceber que ele estava muito bem e que os moradores daquela rua e adjacências ainda iriam escutar muitas das suas histórias.

A alcunha de “o homem que foi ao inferno” foi lhe dada devido a uma história que contava. Nesta história, ele contava que havia morrido e durante sua morte foi até o inferno, ficando por lá uma semana e depois voltado, acordando para a vida.

Essa história inclusive era confirmada pela sua mulher e pelos seus filhos que na época eram pré-adolescentes quando viu o pai ficar desacordado por uma semana e depois acordar vivo como nunca.

Um certo dia estava seu Belarmino sentado à porta de sua casa, à tarde, como era de costume, quando chegou um rapaz de pouco mais de trinta anos, cumprimentou-o se apresentando.

— Seu Belarmino, eu acabo de mudar para essa rua e já conheço o senhor pelos meus vizinhos, escutei muitas histórias ao seu respeito, do quanto é sábio e que, por muitas vezes, ajuda as pessoas daqui a resolverem algum problema, sejam eles conjugais, espirituais e até mesmo sociais.

— Fiquei seu fã mesmo sem tê-lo conhecido ainda, mas agora estou aqui e sinto que o senhor me parece uma pessoa muito boa, é tudo que escutei e algo mais. Eu gostaria de escutar da sua própria boca, se o senhor não se incomodar, uma história que me contaram dando conta de uma certa viagem que fez ao inferno, como foi isso? Eu estou ansioso para escutar essa aventura.

— Bem, meu filho…quando a gente ainda é moço costuma cometer erros que achamos normal no momento, mas que depois nos trazem muitos problemas. Eu não fui diferente da maioria, também cometi meus erros e minhas besteiras, hoje graças a Deus sou consciente da minha missão a frente da minha família, temente a Deus e enquanto estava mais forte dei a minha parcela de contribuição para a nossa comunidade.

— Eu já briguei muito por qualquer motivo banal com todos, inclusive com minha mulher e filhos, com esses eu poderia evitar se não amanhecesse o dia em farras com mulheres e muita bebida. Por muitas vezes minha mulher chamou-me a atenção pelos palavrões que costumava xingar, um motivo simples e eu já soltava aquele nome que segundo algumas pessoas, invoca o nome do demo.

— A gente só acorda para a realidade depois que vamos ao fundo do poço, eu também precisei ir lá para enxergar tudo e todos de um outro prisma. Passei a ver a vida como algo muito importante que Deus nos deu, inclusive se preocupando com a dos outros também, realmente eu passei por uma transformação. Meu ambiente familiar ficou alegre e isso foi percebido também pelos meus amigos e colegas, que até passaram a aproximar-se de mim, coisa que a maioria detestava. Os tempos passaram, e eu estou aqui sempre recebendo algum vizinho ou amigo para conversar e é quando eu aproveito para contar minhas histórias.

— Eu já ouvi algumas senhor Belarmino mas e sobre a viagem que o fez? Insistiu o novo vizinho.

— Calma, eu estava lhe falando essas coisas, para que você possa entender melhor a história que vou lhe contar e ver como pequenas falhas que cometemos no dia a dia podem nos levar a uma ruína espiritual, social, familiar, sem falar na financeira. Vá até a sala, pegue uma cadeira e acomode-se porque essa história é longa.

Belarmino suspirou fundo e começou a contar.

Isso já faz uns cinquenta anos, mais ou menos em 1900. Eu tinha acabado uma tarefa que durou mais de trinta dias, onde abri uma clareira dentro da mata, que ficava próximo ao meu rancho, para preparar a terra e fazer ali uma pequena roça onde eu pudesse colher para ajudar no sustento da casa e também ajudar na comida das nossas criações.

Meu corpo estava cansado e eu achei aquilo normal, pois o esforço empreendido naquela tarefa foi além do normal, porque eu tinha outras coisas para fazer e não poderia demorar muito neste serviço.

Os dias foram passando e as dores do corpo aumentavam e aquela vontade de deitar aumentava mais, mas como eu não queria dar o braço a torcer, continuei a trabalhar mesmo contra os pedidos de minha mulher, dizendo que eu não estava bem e que algum mosquito tinha me picado dentro da mata.

Todo esforço que eu fazia para trabalhar sem aguentar foi vencido pela fraqueza do meu corpo que era maior do que a minha boa vontade e eu caí de vez na cama. Minha mulher já tinha feito o diagnóstico, eu estava com febre há uns três dias. Agora ela ia poder me ajudar, pois daquela cama eu não sentia nenhuma vontade de levantar, parecia até que eu tinha tomado uma surra com um pedaço de pau, mas ela garantiu que ia me curar e começou a fazer todo tipo de remédio que ela garantia ser receita ensinada por sua mãe.

De hora em hora eu era obrigado a tomar algum remédio feito com ervas que eram colhidas perto do nosso rancho, aliás, elas foram plantadas ali estrategicamente, porque morando tão longe da cidade, ninguém podia correr o risco de aparecer alguma doença de uma hora para outra em algum membro da família e não ter um remédio caseiro para diminuir o sofrimento do doente, sendo que na maioria das vezes o doente era curado só com esses remédios e depois não procurava mais o médico da cidade.

Minha mulher fazia de tudo para ver a minha melhora, mas não tinha jeito, a febre só aumentava e eu já estava entrando em um estado de desfalecimento, pois não aguentava nem levantar da cama para as mais primitivas necessidades.

*continua na próxima página…

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